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quinta-feira, 16 de junho de 2011

Porcaria de Vestido

Leonela nunca mais usara seu vestidinho azul. Claro que já se passara 10 anos desde o seu primeiro dia dos namorados com Valdir, dia em que ele lhe presenteara o vestido “pra combinar com o teu cabelo cor de palha”; claro que havia oito anos que ambos romperam e claro que ela nunca mais o vira desde então. Mas o vestido de alguma forma virou um símbolo de sua união fracassada; vesti-lo era como revisitar aquele par de olhos esbugalhados, aquele nariz torto, o perfume adocicado, aquelas entradas no cabelo e as mãos calejadas, rudes e gentis ao mesmo tempo. E é claro, era também lembrar o fatídico ano de 2003 e tudo que Valdir lhe fizera de mal.

Mas tempos desesperados pedem medidas desesperadas. Quando as vacas já morreram de inanição, tudo pode, e o vestido era tão lindo como Valdir era feio, o decote era profundo como as entradas no cabelo dele e seu comprimento era tão pequeno quanto a auto-estima de Leonela. Uma obra recém inaugurara há uma quadra de onde ela morava.

Leonela estava com a faca e o queijo (o decote e a obra) na mão. Tinha que ser agora, última chance para o vestido e para a sua confiança.Nunca uma quadra demorara tanto pra ser caminhada, nunca o cheiro de cimento trouxera tantas expectativas, nunca um tapume guardara dentro de si tantas esperanças como dessa vez. E começou o frenesi polissilábico.

Tudo corria bem, até que no meio de um “GOSTOSA!”, um “doeu?” e um “tu come rato?”, ela escuta uma voz surpresa, rouca, muito mais baixa que as outras dizer:

- Leonela?

Lentamente ela se vira, quase não acreditando no que tinha ouvido, boca entreaberta e lábio tremendo levemente, numa reação instantânea. E lá estava Valdir, do alto de seu 1,60, de capacete amarelo, com um cigarro na mão e a enxada na outra, a mesma tatuagem idiota no antebraço, a mesma expressão de abobado de sempre. Assim como eram as mesmas de sempre as dolorosas lembranças que ele trazia. Leonela desatou a chorar e saiu em desabalada carreira.

Maldito seja o dia em que uma mulher não tenha uma obra para se amparar.

3 comentários:

  1. "Tu come rato" é a melhor - hahahaha!
    Adorei o texto, os trocadilhos e o sarcasmo ;)

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  2. Maldito seja o dia em que uma mulher não tenha uma obra para se amparar.
    Mulher com pouca opção

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